O ESQUELETO VERDE NO ARMÁRIO: A FARSA DO ZEE CEARENSE

Soraya Vanini Tupinambá

O Governo do Ceará vem publicamente celebrar a aprovação do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) da zona costeira como uma grande vitória ambiental. A peça de marketing diz: “são 573 km de litoral protegidos”, “lei mais protetiva que o Código Florestal”, “votação unânime”, “três anos de escuta com todos os setores”. Mas essa narrativa esconde algo muito mais grave: o ZEE aprovado é um corpo esvaziado, mutilado por dentro. Um cadáver normativo vestido com roupa verde para tentar apagar o vexame político de dezembro de 2024, quando o mesmo governo aprovou a pulverização de agrotóxicos por drones — algo que fere profundamente o direito à vida e à saúde das populações do campo e da cidade.

Aprovado na Assembleia Legislativa com pompa, o ZEE nasceu de um processo legítimo de construção social e técnica ao longo de anos. Comunidades tradicionais, movimentos sociais, universidades e instituições públicas contribuíram com conteúdo essencial para proteger não só o meio ambiente, mas também os direitos territoriais e culturais de povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e comunidades tradicionais do litoral cearense. Mas nada disso resistiu ao lobby da FIEC e aos interesses do setor econômico.

O QUE FOI ARRANCADO DO TEXTO ORIGINAL?

A tentativa de fazer um ZEE democrático, justo e ambientalmente robusto foi dinamitada. Das 24 emendas mais importantes construídas com base em conhecimento técnico e comunitário, 11 foram rejeitadas sob pressão direta da FIEC (Federação das Indústrias do Estado do Ceará). As exclusões não foram técnicas, foram políticas — e colocam em xeque a credibilidade do processo. Entre os pontos suprimidos estão:

• O reconhecimento formal de territórios indígenas, quilombolas e tradicionais como áreas a serem protegidas;

• O reconhecimento da pesca artesanal e dos portos de embarcações artesanais como elementos estruturantes do uso sustentável da zona costeira;

• A garantia da consulta livre, prévia e informada (Convenção 169 da OIT) para as comunidades afetadas;

• A proteção para restingas, dunas, falésias e locais de reprodução de aves migratórias;

• A inclusão de ferramentas como cartografia social participativa, planejamento espacial marinho e o pagamento por serviços ambientais;

E, sobretudo, a retirada do §7° do Art. 24, que refreava anistia a criminosos ambientais e legalizava retroativamente empreendimentos ilegais em Áreas de Preservação Permanente (APPs) urbanas — uma verdadeira anistia ambiental disfarçada.

A COREOGRAFIA DO GREENWASHING

  1. Passo 1: O governo aprova o uso de drones para pulverizar veneno no campo — jogando no lixo a referência nacional contra a pulverização aérea de agrotóxicos;
  2. Passo 2: Lança o ZEE costeiro como peça de propaganda ambiental para “limpar a barra” e recuperar imagem;
  3. Passo 3: Cede à pressão do empresariado, esvaziando o conteúdo mais protetivo do texto;
  4. Passo 4: Vende o projeto final — mutilado — como uma “vitória unânime” da política ambiental.

QUEM SÃO OS AUTORES DESSA FARSA?

FIEC, que impôs veto a emendas centrais e paralisou o ZEEC desde 2022 — inclusive às que haviam sido construídas com base em acordos prévios;

Governo do Estado, que traiu sua própria narrativa de escuta e diálogo com os povos do litoral;

Liderança governista na Assembleia, que atuou nos bastidores para desmontar o projeto sem debate público.

A VERDADE NUA E CRUA

O ZEE costeiro do Ceará, da forma como foi aprovado, não protege o litoral — protege o lucro. Ao suprimir direitos de comunidades tradicionais, ao legalizar irregularidades ambientais em áreas urbanas, e ao afastar instrumentos de gestão participativa, a lei se transforma em símbolo da captura corporativa do Estado. É a FIEC que dita as regras. É o empresariado que tem cadeira cativa. Enquanto isso, os povos do mar seguem lutando por reconhecimento, proteção, justiça ambiental e territorial.

A proposta original do ZEE era robusta. Tinha potência para ser uma ferramenta democrática, ecológica e socialmente justa.

Mas o que saiu da Assembleia foi um esqueleto de ZEE, um ZEE zumbi: com corpo técnico, mas sem alma comunitária, sem vida social.
A unanimidade que o governo celebra foi construída eliminando previamente toda divergência substantiva. Assim é fácil ter “consenso”: basta mutilar o que incomoda os donos do poder.

CEARÁ DO ESQUELETO VERDE:

Este zoneamento não representa vitória alguma.

Representa o avanço da maquiagem verde, do greenwashing institucionalizado, e da política ambiental subordinada ao capital.

O litoral cearense não precisa de zoneamento para inglês ver. Precisa de coragem política, proteção real e participação verdadeira.