
Relatório Internacional sobre defensores de direitos humanos impactados por projetos de energia renovável aborda o caso do Quilombo do Cumbe no Ceará
É urgente que a produção de energia pelo mundo todo substitua as matrizes fósseis pelas renováveis como uma das medidas centrais do combate ao aquecimento global. No entanto, nem essa é a única medida necessária – focar apenas nela ocultaria outros tantos agravantes das mudanças climáticas e destruição dos ecossistemas – e nem ela pode ocorrer de qualquer maneira, repetindo os erros históricos que nos trouxeram até aqui.
Um relatório lançado hoje, 29 de abril de 2025, elucida como a transição energética que tem ocorrido, em muitos casos, tem colocado defensores ambientais e de direitos humanos em risco. A publicação é da Swedwatch, uma organização sueca de pesquisa independente cuja tarefa é examinar criticamente as relações comerciais com países em desenvolvimento, com foco em preocupações ambientais e sociais, de acordo com as leis e padrões internacionais de direitos humanos. O relatório contou com a contribuição do Instituto Terramar, da Red de Abogadas Defensoras de Derechos Humanos e do Jalaur River for the People’s Movement (JRPM).
A publicação traz quatro casos de projetos de energia renovável que significaram riscos para defensores, e em alguns casos até mesmo assassinatos, nos seguintes países: Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas. Em todos os casos, fica demonstrado que os conflitos são relacionados ao uso da terra e reiteram desigualdades históricas. Portanto, são os sujeitos marginalizados historicamente que lidam com os agravos desses conflitos.
Também foi feito o cruzamento de dados da capacidade a longo prazo de energia renovável dos países (dados da Global Energy Monitor) com as pontuações do espaço cívico (dados da CIVICUS) a partir da análise de quão bem 196 países cumprem liberdades cívicas básicas – liberdade de associação, reunião e expressão – onde a “transição” de energia renovável está ocorrendo. A conclusão foi que uma parte importante da mudança global em direção à produção de energia mais ecológica ocorrerá em países que limitam as liberdades cívicas e dificultam o trabalho dos defensores de direitos humanos.
A CIVICUS, uma aliança global de organizações da sociedade civil e mais de 4.000 ativistas de 175 países dedicados a fortalecer a ação cidadã e a sociedade civil em todo o mundo, a partir dos critérios acima elencados, classifica o espaço cívico dos países com pontuação de 0 a 100, sendo fechado (1-20), reprimido (21-40), obstruído (41-60), estreitado (61-80) e aberto (81-100). A classificação dos países cujos casos estão discriminados na publicação, são: espaço cívico obstruído no Brasil, e reprimido nas Filipinas, Honduras e em Moçambique.

A atenção aos defensores tem sido uma pauta pouco abordada na agenda do clima, apesar dos casos de assassinatos e ameaças a esses sujeitos por todo o mundo virem aumentando nos últimos anos no contexto da “transição energética”, conforme dados levantados pelo relatório. E segundo a Swedwatch, os defensores “desempenham um papel fundamental na realização de uma transição justa, ao examinar a sustentabilidade dos projetos de energia renovável, documentar os impactos dos projetos sobre os direitos humanos e o meio ambiente, e informar uma variedade de atores sobre falhas e oportunidades na transição para a energia renovável”.
Os casos abordados elucidam a falta de acesso à informação no empreendimento hidrelétrico Mphanda Nkuwa em fase de instalação (Moçambique); os protestos e conflitos jurídicos em torno da usina solar Los Prados (Honduras); a violenta perseguição aos defensores diante do projeto de usina hidrelétrica no rio Jalaur pelo Jalaur River Multipurpose Project (Filipinas); e a falta de informação e consulta ao quilombo do Cumbe pelo empreendimento Bons Ventos e os consequentes danos, violências e violações de direitos sobre a comunidade e o meio ambiente (Brasil);
O caso brasileiro: impactos socioambientais e ausência de reparação para a comunidade quilombola do Cumbe diante do projeto Bons Ventos de geração de energia a partir das eólicas terrestres (Aracati-CE).

Para a comunidade quilombola do Cumbe, localizada no litoral leste do Ceará, a chegada do empreendimento eólico Bons Ventos aconteceu de surpresa. Não foi feito contato com a comunidade e o Estado não realizou a consulta prévia, livre e informada, como seria obrigação tanto da empresa e atores financeiros envolvidos quanto do Estado brasileiro, sobretudo por se tratar de uma comunidade tradicional. O projeto, que no início pertenceu à Bons Ventos Geradora de Energia S.A., teve início em 2008, e em 2012 foi vendido para a CPFL Energias Renováveis, atual dona. A usina de 67 turbinas instaladas contou com o financiamento de 50 milhões de dólares pelo NIB (Nordic Investment Bank) e foi co-financiada pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e BNB (Banco do Nordeste do Brasil).
A comunidade desde o início manifestou seu posicionamento contrário ao empreendimento e à maneira de apropriação sobre o território alheio, e o que recebeu em retorno foi o ostensivo trabalho da empresa na cooptação de sujeitos da comunidade, o que provocou sua cisão. Uma das pessoas entrevistadas para o relatório, que pediu anonimato, reiterou: “Essa prática é muito antiga, desde a colonização, dividir para ter o controle”. Ela complementou ainda que os defensores que lideraram o processo de oposição ao empreendimento sofreram com perseguição e criminalização.
O quilombo do Cumbe, que é tradicionalmente pesqueiro, teve o acesso a seu cemitério ancestral e o acesso ao mar restringido, e foi impactado ainda com a perda de meios de subsistência e disputas sobre o acesso à terra e aos recursos naturais. O território foi impactado com a alteração da paisagem, planificação das dunas, redução da disponibilidade de água doce, impactos na fauna, a erosão do solo, alterações nos ecossistemas, desmatamento e fragmentação de habitat. Além disso, a contrário do discurso midiático que os megaprojetos prometem de emprego e renda, a comunidade lidou e lida com os subempregos, já que as vagas a eles destinadas ocorrem sobretudo na etapa de construção, enquanto nas etapas de operação restam poucos empregos de portaria, segurança e condução de veículos. Além disso, os empregos ofertados durante a instalação do empreendimento são temporários, precários, exaustivos e majoritariamente destinados aos homens. Fundamental destacar também o abandono parental e exploração sexual das mulheres no contexto da instalação do empreendimento.
O Instituto Terramar colaborou para a publicação, e em nota escrita para o relatório destaca que o número de defensores oriundos incluídos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos oriundos da zona costeira tem “aumentado nos últimos anos, abrangendo vários setores econômicos, incluindo as empresas de energia eólica. As disputas territoriais estão se intensificando, com as empresas de energia eólica utilizando diversas estratégias para enfraquecer a organização comunitária e intensificar as disputas entre as pessoas que vivem lá.”
Em novembro de 2024, Terramar levou o caso das violações de direitos humanos e ameaças aos defensores provocados por empreendimentos eólicos no Ceará como denúncia ao 13º Fórum da ONU de Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas. Além do caso do Cumbe, outro caso denunciado durante o Fórum pelo Terramar, tratou do projeto Complexo Eólico Ventos de Acaraú, que impactaria naquele momento 18 comunidades que sequer haviam sido consultadas, e cuja sócia majoritária (99,9%) é até então a norueguesa Scatec, que também está implicada no caso elencando pelo relatório do projeto de usina solar Los Prados em Honduras, apontada por não ter realizado a devida diligência completa em direitos humanos sobre o empreendimento que adquiriu e que tantas violações a direitos humanos e ameaças aos defensores acumulava.
Ao Quilombo do Cumbe, que hoje sequer consegue ligar os freezers da cozinha comunitária devido ao alto valor da conta de energia, resta conviver com os impactos do megaprojeto. O explícito caso de racismo ambiental, já que é recorrente que os megaprojetos escolham territórios de comunidades tradicionais para sua implementação, feito em sua maioria sem consulta ou diálogo, se agrava ainda por não ter havido sequer procura aos quilombolas para diálogo pela reparação dos danos causados, segundo membros da comunidade. Ainda assim, no site do banco NIB, o banco norte-europeu que financiou o projeto, ao tratar sobre os impactos produzidos pelo empreendimento no Cumbe, informam que o impacto ambiental negativo é aceitável, pois será compensado pelo efeito ambiental positivo esperado da geração sustentável de eletricidade e que os membros da comunidade “foram compensados pelos inconvenientes relacionados ao projeto (como tráfego e acesso limitado às áreas do projeto) por meio de melhorias nas estradas, moradias, infraestrutura social e fornecimento de programas educacionais” (tradução nossa). Fica o questionamento sobre quem possui legitimidade para dizer se as medidas feitas sem diálogo podem ser chamadas de compensação diante dos inúmeros danos com os quais as comunidades e os defensores tiveram e têm de conviver. Outro agravante é a empresa justificar suas ações violentas com possíveis “melhorias”, que nitidamente são falta de políticas públicas de qualidade para o território quilombola, ou seja, responsabilidade dos governos municipal, estadual e federal, que deveriam acessar sem nenhum tipo de troca ou desfavorecimento.
O relatório destaca ainda alguns acordos e tratados de empresas e direitos humanos que devem ser observados pelos atores envolvidos na implementação dos projetos de energia renovável, visto que, uma vez assinados pelos Estado-Nação, geram obrigações e recomendações aos Estados, empresas e entidades financeiras. Os acordos elencados foram Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos; Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais sobre Conduta Empresarial Responsável; A convenção de Aarhus; Os Princípios Voluntários sobre Segurança e Direitos Humanos; A Diretiva da UE sobre Diligência Devida em Sustentabilidade Corporativa; e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. A cada caso elencado, a Swedwatch vincula os acordos e tratados que envolvem as partes e que, caso tivessem sido respeitados, teriam garantido a integridade e liberdade dos defensores, o que é crucial para se pensar em justiça na transição energética.
A responsabilidade (e omissão) dos Estados, empresas e entidades financeiras para com os defensores
No Brasil, a legislação ambiental não caminha na mesma velocidade que os grandes empreendimentos econômicos de energia renovável, ou mesmo sobre seus estudos de impactos socioambientais. Um exemplo é o PL 572/2022 que cria o marco nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas , sobre o qual é urgente incidir pela aprovação, e também a necessidade de o país ratificar o Acordo de Escazú – Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Justiça em Questões Ambientais na América Latina e no Caribe, de 2018. O acordo é um tratado histórico destinado a promover os direitos ambientais, impondo obrigações aos Estados partes, incluindo a obrigação de assegurar um ambiente seguro e propício para os defensores, livre de ameaças, restrições e insegurança.
O relatório deixa algumas recomendações a empresas e investidores, destacando a necessidade de fortalecimento de processos de devida diligência em direitos humanos (DDDH) e engajamento com as partes interessadas, o que significa o compromisso das empresas em garantir processo de gestão de crises e impactos, para que suas operações não violem direitos humanos e nem causem danos ao meio ambiente, e ainda implementar medidas de mitigação e reparação, respeitando a consulta prévia, livre e informada, quando aplicável. Aos Estados, a publicação também ressalta a importância de garantir proteção e engajamento com defensores em projetos de energia renovável e de assegurar mecanismo de reparação para violações cometidas por policiais, militares e atores estatais ou empresariais.
Esta importante publicação que foca nas ameaças aos defensores pelos projetos da energia renovável se soma a inúmeros estudos e comprovações das violações a direitos humanos e impactos ambientais desses empreendimentos. Se o compromisso global for por um planeta com melhores condições de vida, os projetos da transição energética não podem atropelar a diversidade dos modos de vida, a preservação do meio ambiente e os direitos humanos. Povos e comunidades tradicionais precisam estar no centro das decisões, com participação efetiva, vinculativa e respeitosa. É essencial garantir justiça ambiental, justiça trabalhista e o pleno respeito aos direitos coletivos, assegurando que nenhum projeto avance sem considerar seus impactos reais sobre pessoas e ecossistemas. São muitos fatores que devem ser estudados, muitos sujeitos com quem dialogar, muitos aspectos a se considerar. Não é mais aceitável o simples discurso de que um projeto é “justificável” por utilizar uma fonte renovável. Cada projeto precisa ser analisado com profundidade, com escuta real das comunidades envolvidas e com compromisso com a reparação, a equidade e a dignidade.
Acesse a publicação completa “Energias renováveis e represálias: defensores em risco na transição para a energia verde no Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas” aqui.