Salvaguardas Socioambientais desafiam entes públicos a perceberem lacunas e fragilidades em políticas e normativas responsáveis por inúmeros conflitos e danos socioambientais ligados a empreendimentos de energia renovável

Após cerca de dois anos de sistematização dos intensos e degradantes impactos da expansão corporativa de megaprojetos de energias renováveis, em especial na região Nordeste, a luta por uma transição energética popular e socioambientalmente justa ganha mais um instrumento propositivo. Lançado em janeiro, o Documento “Salvaguardas socioambientais para energia renovável” é fruto da escuta de cerca de trinta comunidades tradicionais, articulada pelo Plano Nordeste Potência, em colaboração com universidades, especialistas e organizações da sociedade civil e entidades engajadas na defesa de ecossistemas e modos de vida atingidas ou ameaçadas pela expansão de renováveis. O documento compila um panorama dos problemas e possíveis soluções, com o objetivo de corrigir o curso das políticas de energia renovável. Visa garantir a reparação dos danos já causados, a implementação de ações mitigadoras e a instituição de salvaguardas para proteger os povos e comunidades tradicionais, seus modos de vida, a biodiversidade e os ecossistemas. 

Entidades e representantes comunitários, que construíram o Documento “Salvaguardas Socioambientais para a Energia Renovável” estão, atualmente, entregando o documento a entes públicos em diferentes estados. No mês de março, foi a vez do Ceará. Entre os dias 04 e 07 de março, o Instituto Terramar e representantes do Plano Nordeste Potência e dos territórios envolvidos na construção realizaram uma agenda com diversas instituições do poder público para a entrega, apresentação e diálogos sobre as Salvaguardas. As visitas foram direcionadas a entes como a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Mudança do Clima (SEMA), Secretaria Estadual do Desenvolvimento Econômico (SDE), Superintendência Estadual do Meio Ambiente (SEMACE), Defensoria Regional de Direitos Humanos (DRDH)/Defensoria Pública da União (DPU), o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), a Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Ceará), Mandatos parlamentares da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (ALECE), entre outras.

A iniciativa permitiu olhar junto aos entes públicos e operadores de justiça para os problemas e gargalos nas políticas públicas que abrem margem às agressões e degradações contra comunidades e a vida ecológica no estado. Contextualizando os diálogos ao campo de atuação de cada instituição visitada, foi possível traçar horizontes de esforços multilaterais e conjuntos. Exemplos emblemáticos sistematizados no documento, como o Quilombo do Cumbe (Aracati), Xavier (Camocim), comunidades de Amontada, Curral Velho (Acaraú) e Jardim em Carnaubal (Serra de Ibiapaba), reforçam a urgência em considerar as recomendações ali materializadas, tanto no campo dos contratos de arrendamento de terras, como nas dimensões da emissão de outorgas de geração/transmissão de energia e das políticas públicas que regulam e legitimam o licenciamento ambiental de empreendimentos predatórios.

Foram apontados danos e violações identificados em diferentes etapas da cadeia produtiva das energias renováveis no Ceará. Entre eles destacaram-se:

  • Ausência da aplicação de protocolos de Consulta (Convenção 169) junto às comunidades tradicionais, inclusive no caso recente de aprovação no Coema da Planta de Hidrogênio Verde sem aplicação da Consulta Prévia, Livre e Informada à população indígena. Outro exemplo é o caso do complexo eólico Ventos de Acaraú, em fase de Licença de Instalação (LI), que impactará 10.200 habitantes distribuídos entre 18 comunidades, incluindo pelo menos 3 comunidades tradicionais de pescadores que não foram consultadas.
  • Flexibilização do licenciamento ambiental.
  • Deficiências e inconsistências nos processos de licenciamento ambiental.
  • Perda de terra e território.
  • Destruição de ecossistemas dunares e lagoas, perda de biodiversidade, desmatamento e supressão de habitats.
  • Ausência do Estado e de reparação diante dos problemas causados pelos ruídos e sombreamentos dos aerogeradores às populações afetadas pelas energias renováveis.
  • Alterações no modo de vida das comunidades com a chegada dos grandes empreendimentos, incluindo violações dos direitos de crianças e adolescentes e abandono parental – conhecidos como “os filhos dos ventos”, entre outros.

Diante do cenário, o coletivo expressou sua preocupação com a expansão das renováveis em terra e em mar, sem que haja uma efetiva mudança de rota e garantia de reparação dos danos já causados. Como uma resposta a essa preocupação, o coletivo apresentou as salvaguardas. Na entrega do documento à SEMA, Andrea Camurça (Instituto Terramar) destacou como a inobservância dessas salvaguardas ameaça desde a preservação ambiental e dos territórios até a segurança alimentar e hídrica do estado. As tensões se intensificam ainda mais diante do descumprimento de protocolos de consulta e processos de licenciamento com inconsistências e violações de direitos humanos, como a falta de acesso à informação, a ausência de análise de documentação sobre situação fundiária, ambiental e de patrimônio histórico, além da falta de escuta e participação popular. Rárisson Sampaio, professor da Universidade Regional do Cariri e consultor do Plano Nordeste Potência, enfatizou algumas vezes que “fragilidades nas ordens jurídicas, técnicas e normativas, com o intuito de viabilizar projetos de energias renováveis, vulnerabilizam ambientes e povos. Essas lacunas são evidenciadas, por exemplo, pelo avanço mundial de pesquisas vinculadas à saúde ambiental, refletindo na defasagem da construção de normas técnicas e protocolos de licenciamento.”

Ao receber o documento, Vilma Freire, secretária da SEMA, ressaltou que este representa um “presente” para a Secretaria, uma vez que oferece subsídios relevantes para sua atuação no Conselho Estadual de Meio Ambiente (COEMA) e na implementação do Plano Estadual de Transição Energética Justa do Ceará. Ela reconheceu a necessidade da participação da sociedade civil no Plano, que atualmente inclui apenas entes do governo, da indústria e do comércio. Aqui nos vem a pergunta: seria essa transição realmente justa? Justa para quem? 

Em tempos em que o debate da transição energética se amplifica e o empresariado faz pressão sobre o estado para legitimar e facilitar a expropriação de territórios para uso corporativo, mais uma vez a luta e articulação dos povos e comunidades tradicionais junto à sociedade civil organizada se mostram uma via fundamental para avançar na defesa da natureza, do bem viver e de uma transição energética justa e popular.

Fotos de Carla Brenda e Elena Meirelles

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