CARTA POLÍTICA – I ENCONTRO LGBTQIAPN+ DA ZONA COSTEIRA DO CEARÁ

Nós, LGBTQIAPN+ das comunidades costeiras do Ceará, junto com nossas parcerias: Associação Quilombola do Cumbe, Associação dos Pequenos/as Pescadores/as e Agricultores/as Assentados/as do Imóvel Sabiaguaba – APAPAIS, Instituto Terramar, Grupo de Pesquisa Naterra/UECE, Casa de Andaluzia, Tambores de Safo, Tambor Para Mulher e Casa das Negas, reunidas na Escola de Educação do Campo Maria Elisbânia, situada na comunidade de Caetanos de Cima, Amontada, nos dias 14 a 16 de Julho de 2023, vimos nos manifestar sobre as nossas realidades, as violências que passamos desde nossas infâncias, as potências que temos construído em nossos territórios e demais pautas políticas.

Vivemos em contextos de conflitos ambientais e sociais de terra, água e território, onde as comunidades tradicionais enfrentam diferentes violências que vão desde a negação do direito de existir em suas pluralidades (pesqueiras, quilombolas, indígenas, agricultoras, camponesas), à criminalização, perseguição e genocídio.  A formação dos territórios tradicionais costeiros é marcada pela presença negra e dos povos originários, com histórias violentadas pelo patriarcado racista que tem, entre suas expressões, o racismo ambiental e a heterocisnormatividade.

Nós, a população LGBTQIAPN+, estamos presentes nestes territórios e somos parte da construção de seus modos de vida, realizamos as atividades tradicionais, colaboramos na proteção e conservação ambiental e nas mobilizações em defesa da terra-território e dos ecossistemas, assim como, carregamos também as ancestralidades que marcam nossas histórias comunitárias.

Estamos cientes dos prejuízos causados sobre os territórios e modos de vida tradicionais, com a instalação de mega negócios de turismo, carcinicultura e parques eólicos na terra (que agora avançam sobre o mar). A invasão de nossas comunidades, por estes empreendimentos, expulsa sujeites de seus locais de moradia e convivência, privatiza os territórios, gera conflitos internos, reduz os espaços para o exercício da pesca-artesanal e da agricultura, contamina os ecossistemas e compromete os ciclos ecológicos, diminuindo as condições para a prática plena e autônoma dos modos de vida.

Por esses motivos estamos juntes com os movimentos de pescadores e pescadoras artesanais, e nos colocamos contra as formas de usos e ocupações que destroem a natureza e vulnerabilizam as pessoas. Em especial, saudamos e apoiamos a Campanha “Mar Aberto, Velas Livres!”, realizada pela Articulação Povos de Luta (ARPOLU), e reconhecemos o relevante papel das organizações e lideranças comunitárias que, ao longo dos anos, lutam, de forma incansável, na defesa ambiental e dos modos de vida ancestrais. 

Para nós, além desses contextos violadores, soma-se, de forma ainda mais cruel, a LGBTQIAPN+fobia que quer nos impor a subordinação, seja perante o  Estado, o capital e aos fundamentalismos religiosos disseminados em nossas comunidades. Enfrentamos, desde a infância, diferentes e profundas violências que marcam nossas vidas e corpos, desde a não aceitação de nossas identidades e/ou orientação sexual, à negação de nossas existências como pessoas, o desamparo afetivo, o cerceamento de nossa liberdade, como também a exploração e violência sexual,  o julgamento moral, a ridicularização, o descarte e a exclusão, e outras diversas formas de discriminação. Da mesma maneira, por vezes, somos desconsiderades na nossa plena condição humana, e vivenciamos o desrespeito cotidiano às nossas identidades e sexualidades. Também somos invisibilizades ou até mesmo excluídes de processos econômicos de produção e comercialização.

Somos vítimas de violência na família, nas escolas, nas instituições religiosas, nas organizações comunitárias e num mundo onde o sistema heterocisnormativo nos enquadra, nos mutila e nos mata de diferentes formas e, ainda, em instituições sociais que nos negam direito à identidade e sexualidade e nos submetem a humilhações e violências políticas, físicas e psicológicas, gerando um conjunto de consequências cruéis sobre a nossas vidas, corpos/corpas e condições existenciais.

De muitas formas, a solidão e a marginalização nos acompanha desde à infância, o que nos torna mais vulneráveis ao adoecimento mental e ao suicídio. As travestis, por exemplo, não têm acesso às condições efetivas de acompanhamento de saúde, nos seus processos transicionais, legítimo direito ao bem-estar de seus corpos e atendimento às suas necessidades específicas. Elas têm suas humanidades violentadas desde criança, quando são cerceadas das liberdades de ser, vestir, brincar e socializar e, quando adultas, são hiperssexualizadas, objetificadas como corpos para o entretenimento, além da negação da presença das mesmas nos espaços religiosos de vivência da fé e da espiritualidade. 

Apesar de todas as conquistas dos movimentos LGBTQIAPN+, nossas vidas seguem na precarização, aprofundada pela falta de políticas públicas efetivas destinadas a nós. Sequer temos respeitado o básico direito de decidir quem somos e os nossos nomes, as roupas que queremos vestir ou a forma como nos relacionamos. É certo que, na atual conjuntura, ainda somos alvo fácil para diversas negações de direitos, por parte dos governos locais, mas eles também o fazem pela conivência, de parte dos nossos próprios pares comunitários costeiros que, impregnados pelo espectro LGBTQIAPN+fóbico da sociedade, acabam  também por nos desqualificar, demonizar, tratar como se tivéssemos menos valor que as demais pessoas, ou como se não tivéssemos nenhum direito, contribuindo para nosso silenciamento dentro dos espaços coletivos comunitários e não comunitários. 

Por fim, vale dizer que, a destruição ambiental acentua as vulnerabilidades da população LGBTQIAPN+, principalmente, pela negação de nossa participação, por estarmos fora do que é considerado “normal”, e por não sermos reconhecides em nossas condições diversas e como portadores de direitos. Afirmamos que, ser comunidade tradicional, não pode significar um lugar de perpetuação de violências, sendo mais que urgente o reposicionamento de todos os territórios para entender, acolher e respeitar nossas vidas, e assim romper também com os sistemas de opressões que prejudicam a todes. A revolução LGBTQIAPN+ é agora! Estamos fortalecides e firmes, e não aceitaremos nenhuma forma de violência!

Por isso, consideramos fortificante para  todas es LGBTQIAPN+ saudar e referenciar nosses antepassades como Xica Manicongo e Timbira, e as mais novas como Camylla, Dandina e Jefferson, do Quilombo do Cumbe; Cobra Preta, de Aracati; Romária Holanda, de Caetanos de Cima; Messias, do Batoque; Nairóbi Souza, do Terramar; e Dandara, da Rede AfroIndígena Ambiental do Ceará (RAIA), parcerias das comunidades que, mesmo em contexto de violência, e negação de seus direitos, assumem a coragem de viver e experienciar de forma livre suas identidades e orientações sexuais e lutar pelos direitos da população LGBTQIAPN+. Estamos juntes,  nos organizando no enfrentamento à todas as formas de violências, violações de direitos e discriminações, rumo à uma sociedade livre das opressões de classe, gênero, orientação sexual, credo, raça, etnia, idade, onde todes possamos ser verdadeiramente livres e conviver em equidade e harmonia!

Para que todes se engajem em pertença e aliança, anexamos algumas de nossas bandeiras e  pautas reivindicatórias e um pequeno glossário de expressões utilizados nesta carta.

Amontada, CE, 16 de Julho de 2023

I Encontro LGBTQIAPN+ da Zona Costeira do Ceará

Bandeiras de Lutas

  1. 1. Defesa dos territórios, ecossistemas e modos de vida tradicionais e contra o racismo ambiental, com enfrentamento à LGBTQIAPN+fobia em todas as dimensões de sua existência, incluindo a luta pelo  direito destas pessoas à terra, ao território e à ancestralidade; 
  2. 2. Educação não discriminatória que possibilite às crianças e adolescentes o acesso à informações e conhecimentos que impulsionem a construção de uma sociedade mais igualitária e decente, pois não se pode considerar decente uma sociedade que mata a população LGBQTIAPN+; 
  3. 3. Enfrentamento à LGBTQIAPN+fobia institucional e luta pelo reconhecimento e respeito às identidades e à diversidade, como o direito ao nome social, ao processo transsexualizador, e acesso aos banheiros, conforme nossos gêneros; 
  4. 4. Luta pelo reconhecimento e respeito à infância e adolescência, pela garantia do  direito a uma vida saudável e sem violências;
  5. 5. Luta contra a violência, o abuso e à exploração sexual denunciando e enfrentando os discursos que associam a população LGBTQIAPN+ à este tipo de violência, quando na verdade somos, sobretudo, vítimas delas, desde a infância; 
  6. 6. Enfrentamento à invisibilidade e ao silenciamento das LGBTQIAPN+, evidenciando, nos diferentes espaços, as nossas identidades, questões e necessidades;
  7. 7. Luta pelo pleno reconhecimento social, político, econômico e cultural de nossas capacidades de desenvolvimento em todas as dimensões humanas;
  8. 8. Luta pela disseminação de informações e conhecimentos sobre nossas existências e direitos, em todas as instâncias da sociedade: famílias, escolas, comunidades, universidades, mídias, poderes públicos e privados;
  9. 9. Luta pela descentralização geográfica das Paradas da Diversidade e das políticas públicas para a população LGBTQIAPN+, para que sejam efetivadas regionalmente e localmente;
  10. 10. Luta por acesso à políticas públicas humanizadas e não discriminatórias.

Pautas junto aos entes públicos como um todo

  1. 1. Que as políticas e projetos de uso e ocupação dos territórios costeiros, considerem a existência, os impactos e a participação da população LGBTQIAPN+;
  2. 2. Que os poderes públicos, em todas as instâncias, institucionalizem as políticas e projetos de enfrentamento à LGBTQIAPN+fobia, reduzindo os riscos de perdas dos direitos conquistados, especialmente dos direitos humanos e minorias, devido a inconstância de governos; 
  3. 3. Que os governos municipais, estadual e federal, efetivem as conquistas de políticas públicas para a população LGBTQIAPN+, considerando as especificidades dos povos e comunidades tradicionais, e seu  acesso à formação e informação sobre esses direitos; 
  4. 4. Que os órgãos públicos, ambientais e agrários, em suas três esferas, tenham atenção para os impactos e riscos socioambientais dos diferentes grupos sociais presentes nos territórios;
  5. 5. Que todos os poderes públicos implementem cotas para pessoas trans em seleções e concursos públicos; 
  6. 6. Garantir a inclusão de pessoas trans e travestis nos grupos prioritários do CadÚnico.

Que Governos Municipais e Estadual congreguem esforços para:

  1. 1. Priorizar, nos  orçamentos públicos, políticas voltadas à garantia dos direitos des LGBTQIAPN+, considerando  as especificidades territoriais e geracionais dessa população, e combatendo a LGBTQIAPN+fobia institucional;
  2. 2. Implementar políticas e programas de formação permanente de servidores e servidoras públicas em todas as áreas, especialmente na Educação, incluindo políticas para a permanência escolar de crianças LGBTQIAPN+, assim como na área da Saúde Integral, Assistência Social, Segurança Pública, Juventude, Arte e Cultura, Trabalho e Renda, Meio Ambiente, Questão Agrária, etc.
  3. 3. Implementar Centros de Referências Regionalizados que contemplem o atendimento a todos os municípios costeiros, em especial as comunidades tradicionais;
  4. 4. Ampliar o acesso ao Projeto Retificatrans (mutirões de retificação do nome social) contemplando as comunidades tradicionais costeiras;
  5. 5. Ampliar o número de ambulátórios transsexualizadores nos municípíos e retirada  imediata do atual, e  único,  Ambulatório Sertrans no Hospital Mental de Messejana, bem como,  melhoramento de  suas condições de funcionamento e capacidade de atendimento;
  6. 6. Ampliar o acesso aos medicamentos demandados pelas pessoas trans, especialmente aquelas de baixa renda e pertencentes às comunidades tradicionais;
  7. 7. Criar Coordenadorias Municipais e GTs intersetoriais e intergovernamentais para enfrentamento à LGBTQIAPN+fobia, contemplando os contextos e territórios dos povos e comunidades tradicionais;
  8. 8. Reconhecer e Desenvolver políticas de combate à violência e ao transfeminicídio e, ao mesmo tempo, ampliar o acesso das LGBTQIAPN+ à segurança pública;
  9. 9. Descentralizar as ações do SINE-IDT e outras políticas de trabalho e renda, a exemplo do Oportuniza Trans, direcionando-as, de forma contextualizada, aos territórios tradicionais; 
  10. 10. Mapear e gerar dados, de maneira participativa, sobre a população LGBTQIAPN+ nas comunidades da zona costeira;
  11. 11. Implementar políticas de saúde mental, direcionadas às pessoas LGBTQIAPN+, incluindo crianças e adolescentes em sua fase de autodescobrimento;
  12. 12. Criar novas, e fortalecer as já existentes,  casas de apoio e acolhimento à população LGBTQIAPN+
  13. 13. Criar  Conselhos e Coordenadorias Municipais LGBTQIAPN+;
  14. 14. Realizar Conferências Municipais LGBTQIAPN+, garantindo a participação das comunidades tradicionais da Zona Costeira.

Organizações Comunitárias e da Sociedade Civil 

  1. 1. Reconhecer, em suas ações e metodologias, nossa presença, trabalho político e necessidades específicas, bem como a importância do nosso direito à uma vida sem qualquer tipo de violência; 
  2. 2. Construir espaços de formação que colaborem com a ampliação do letramento LGBTQIAPN+ nas comunidades, nos espaços públicos, e em todos os lugares; 
  3. 3. Fortalecimento dos coletivos LGBTQIAPN+ que já existem e incentivo à formação de outros; 
  4. 4. Formação de educadores/as direcionades à população LGBTQIAPN+;
  5. 5. Promoção de espaços formativos dentro das associações comunitárias e da sociedade civil; 
  6. 6. Instituir junto conosco, o dia 16 de julho como Dia da luta contra a LGBTQIAPN+fobia  nos territórios tradicionais costeiros. 

GLOSSÁRIO

  1. 1. Ancestralidades: ancestralidade é fonte de vida, sabedoria, identidade, pertencimento e criatividade, é o fio que tece passado, presente e futuro, formando uma teia de relações que conecta humanidades. É também a memória que transcende espaço e tempo para recriar futuros possíveis e saudáveis.  Gaby Oliveira
  2. 2. Heterocisnormatividade: é o sistema que elenca como normais pessoas heterossexuais e cisgêneras.  Institui um modelo estrutural de gênero binário (homem cis e mulher cis e/ou masculino e feminino) e a heterossexualidade como únicas formas de gênero e sexualidades possíveis/vivíveis.
  3. 3. Identidade de gênero: está relacionada  como a pessoa se identifica. Exemplos: travesti, mulher trans, homem trans, não binárie, homem cis, mulher cis. 
  4. 4. Orientação sexual: é a atração afetiva – sexual de uma pessoa para com a outra. Exemplo: gay, lésbica, bissexual, pansexual, heterossexual.
  5. 5. Cisgênero/a: pessoa que se identifica com o gênero atribuído no momento do nascimento.
  6. 6. Racismo ambiental: É quando as comunidades e populações negras, indígenas, não-brancas e imigrantes têm seus territórios tomados pelos brancos, de um modo geral as empresas, os políticos, e esses grupos obtêm todos os lucros advindos da exploração dessas riquezas e a degradação fica toda para essas comunidades. Inclusive a degradação não é só a degradação ambiental, mas ela é também social. (Cristiane Faustino)