Eólicas no mar? Querendo ou não, o Governo terá de escutar e considerar os Povos do Mar

Representantes de comunidades costeiras do Ceará denunciam, em audiência sobre eólicas offshore, a violação de leis por parte do Estado que garantem a consulta prévia, livre e informada. Duas expressões foram problematizadas: “transição energética” diante da expansão das energias de fonte fóssil no Ceará, a exemplo da Portocem que prevê instalar três termelétricas à gás no estado, e “energia limpa” devido as injustiças socioambientais e territoriais cometidas na implementação desses projetos.

Mais de 130 pessoas do litoral do Ceará, de 38 comunidades e 15 municípios, compareceram na tarde dessa terça-feira, 02 de maio, à Assembleia Legislativa (Alece) para uma audiência pública com o tema “Implantação de Parques de Energia eólica no mar e seus impactos sociais, econômicos e ambientais”. Pela primeira vez, desde que o poder público vem trabalhando para a implementação de eólicas marítimas (offshore) no Ceará, as comunidades costeiras do estado tiveram um momento com representantes dos três poderes para debater esses projetos. Denunciaram a violação por parte do Estado das leis que lhes garantem a consulta prévia, livre e informada e reiteraram que não são de acordo com a implementação desses parques como vêm sendo planejados nos âmbitos federal e estadual.

A audiência pública, que foi solicitada pelos povos do mar através da Articulação Povos de Luta (ARPOLU), movimento que reúne comunidades costeiras do Ceará em preservação e proteção a seus direitos diante da ameaça de instalação dos parques eólicos nos seus territórios, foi requerida pelo deputado e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa, Renato Roseno (PSOL – CE), quem presidiu a audiência, articulada também pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Semiárido da Alece.

Mais de 170 pessoas comparecem na Audiência Pública de terça-feira (02/05)

A primeira mesa contou com o deputado estadual Missias Dias (PT-CE) e representantes dos movimentos sociais, como a ARPOLU, a Organização Construindo Poder Popular – OPA, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, o Instituto Terramar e a Conectas. O poder público esteve representado na segunda mesa por servidores da Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima – SEMACE, da Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Sustentável[1] – SDE, da Secretaria de Articulação Política, Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará – IDACE, Ministério Público do Estado do Ceará – MPE e Defensoria Pública do Estado do Ceará – DPE.

O governador, apesar do pedido das comunidades de que se fizesse presente neste diálogo, não compareceu, tampouco algum representante da Casa Civil, como fora solicitado pelos representantes da Assembleia Legislativa. Helena Soares, representante da Associação de Moradores de Caetanos de Cima e da ARPOLU, aguarda alguma resposta porque até o momento o Estado não ouviu os povos do mar. “Fomos nós, comunidades costeiras, foi a força popular, que elegeu o governador. (…) Antes de mais nada, o mar livre, a liberdade do nosso oceano – é inegociável para nós. Mas estamos muito interessados em discutir junto a ele (o governador) uma transição energética limpa, justa e popular.” Na ausência de uma representação direta, o secretário executivo de Articulação Política e Participação Social, Miguel Braz, informou que estava autorizado a falar pela Casa Civil e pelo gabinete do governador, mas sublinhou que o governo iniciou recentemente o movimento de escuta aos movimentos sociais, e que haverá, ainda no mês de maio, uma reunião das comunidades com o governador e os secretariados “que inclusive deveriam estar aqui, mas que infelizmente não estão, mas estarão lá”, disse ele, para tratar do tema das eólicas offshore e da transição energética.

Helena Soares, presidente da Associação dos Moradores de Caetanos de Cima e integrante da Articulação Povos de Luta, abre a primeira mesa

Como Miguel Braz citou o“ Projeto Ceará Sem Fome” em andamento, Angelaine Alves, também liderança de Tatajuba, apontou uma contradição: “Como o governador quer falar em Ceará sem fome, quando vão tirar o alimento da boca de milhares de pessoas assinando acordos bilionários com empreendimentos eólicos? Como diz que vai criar cozinha popular, se o ingrediente principal (peixe) sumiria do prato?”

A Terramar foi representada por Soraya Vanini Tupinambá, membro da coordenação colegiada do Instituto e coordenadora técnica do projeto “De Mãos Dadas Criamos Correnteza”. Soraya destacou em sua fala que não é condizente falar em transição energética quando as energias geradas a partir de fontes fósseis não estão sendo substituídas pelas renováveis, e sim acrescidas, como é o caso do projeto Portocém, que prevê criação de mais três termelétricas para o Pecém no Ceará. Trouxe ainda a crítica à chamada energia limpa, que considera apenas o ponto de vista da “ecoeficiência, mas se verifica que a implantação se dá com vastos impactos, conflitos e injustiças ambientais”. Os estudos dos impactos das eólicas terrestres apontam que, para sua implementação, ocupam vastos territórios produtivos (em 2019 eram mais de 243 mil hectares ocupados pelos parques eólicos no Brasil segundo a tese de Auricélio Lima2), muito dos quais agricultáveis e de reserva de água doce, como os campos de dunas, que vêm sendo destruídos e aplainados pelos parques eólicos terrestres no Ceará.

Lia Felismino, defensora pública da DPE, reforçou a importância e obrigação do Estado de rever seu paradigma energético atual. “A energia para ser sustentável, precisa ser sustentável durante todo o processo – da escolha à implementação. O primeiro passo para que a gente faça isso é ouvir a população diretamente impactada. Isso não é desejo da população, isso é direito garantido pela convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que foi recepcionada e aprovada através do decreto legislativo 143 de 20 de junho de 2002. O Estado Brasileiro assim determina a obrigatoriedade da escuta e da participação popular nesses processos que a impactam diretamente.” Angelaine, da ARPOLU, também denunciou a violação sistemática desse direito pelo Estado: “Nós precisamos ser consultados previamente. Todos os contratos com empreendimentos eólicos, até hoje, nós nunca fomos consultados. É assinado todo dia um novo contrato. Mas, nós não somos consultados. […] Que o governo deixe de assinar contratos de energia e mineração, até escutar e respeitar as posições das populações tradicionais, quilombolas e povos originários existentes no Ceará!”

Entenda as normativas sobre consulta às comunidades tradicionais diante de políticas públicas e projetos que afetem suas vidas e territórios:


“Por que a população costeira do Ceará veria de bons olhos os megaprojetos planejados para os mares, se a experiência com eólicas em terra guarda inúmeras memórias de violações e danos?”, questionou o Pescador Valyres de Sousa, que também indagou a plateia sobre a distribuição dessa energia gerada nos territórios tradicionais: “Eu pergunto a vocês das comunidades: Qual foi o papel de energia que baixou na casa de vocês?” A resposta foi ouvida em coro: “Nenhuma!” Fato é que os novos empreendimentos de energia não estão pensados para a demanda local, e sim para exportação de todo o hidrogênio verde produzido, em favor de uma transição energética europeia. Vera Lúcia, liderança da comunidade de Apiques do Assentamento Maceió, exige a preocupação com o povo por parte do governo eleito: “Queremos mandar um recado pro governador Elmano e ao nosso presidente Lula: que coloquem os pescadores, as famílias de pescadores, as marisqueiras, os trabalhadores, as áreas de assentamento, os indígenas e quilombolas, dentro do orçamento. Porque até agora não entramos, não.”

“No Mar tem vidas que resistem! Fora Eólicas! O mar é nosso!”

Promessas e Encaminhamentos

Decorrentes das solicitações da sociedade civil e do retorno dos representantes do poder público, durante a audiência pública na Alece, destacamos e documentamos os encaminhamentos, chamando a atenção para: 1) as reuniões com o governador prometidas ainda para o mês de maio: 2) a articulação de uma audiência no Congresso Federal em Brasília com os representantes do poder público da federação e participação das entidades cearenses, da Frente Parlamentar Ambientalista, e 3) a imediata retificação política de passar a ser observado o direito à consulta prévia, livre e informada às comunidades costeiras diante dos projetos de energia eólica e hidrogênio verde.

“A PESCA ARTESANAL NÃO PODE MORRER NA PRAIA” (ARPOLU) Confira aqui os encaminhamentos completos.

Confira aqui os encaminhamentos completos.


Confira também:

A Carta Aberta da Articulação Povos de Luta: https://drive.google.com/file/d/1KNE7b07-kLsM796aIRbDaDEKeq1BrzcE/view?usp=sharing

A Carta dirigida às instituições públicas e a sociedade acerca do processo de planificação e licenciamento de mega empreendimentos eólicos marinhos no Ceará:

https://drive.google.com/file/d/1Dzo4TNUzs58c54kVsPDkazteyseoYwqv/view?usp=sharing

O Artigo “As características da normativa estadual do Ceará para produção de hidrogênio verde” : https://drive.google.com/file/d/1PUPTEeTW7yKvJrkyVR9Z1HljhiReRz1d/view?usp=sharing

O Estudo de Caso: Cadeia Produtiva da energia eólica continental e marinha: https://drive.google.com/file/d/1GeLvcum3HF5CErNo-SGdF-aWoQb6ce_e/view?usp=sharing

O site do projeto “De Mãos Dadas Criamos Correnteza”: https://demaosdadas.org.br/

O Núcleo de Comunicação do Instituto Terramar agradece a jornalista Eliege Fante da Ecoagência pela colaboração na construção dessa matéria.

1 A mudança no nome da secretaria (adição de “sustentável”) foi elucidada pela representante da pasta na audiência, Brígida Miola.

2 LIMA, J. A. G. A natureza contraditória da territorialização da produção de energia eólica no Nordeste do Brasil. 2019.