O que o Sistema de Justiça tem contra os povos?

“Vocês sabem porque estão aqui?” Luciana, liderança quilombola do Cumbe repetiu algumas vezes essa pergunta. “Vocês sabem porque estão aqui? Porque nós sabemos porque fazemos essa festa.”

Luciana, liderança quilombola, falando à roda na Ilha de Carapeba (Foto de Livia de Paiva do Instituto Terramar)

Estávamos na Ilha Carapeba, no manguezal da foz do grande Rio Jaguaribe, no território de mariscagem e vida do Quilombo do Cumbe, município de Aracati. Sentados em roda, escutamos as palavras das lideranças Luciana, Cleomar, Damiana, Heloisa e outras contribuições de quem se reunia ali em um ato também de solidariedade. Esse ano, a Festa do Mangue aconteceu pela 8a vez, carregando como tema “Manguezal Berçário da Vida Marinha e do Bem Viver (Biointeração) dos Povos das Águas”. 

Foi no dia 5 de dezembro de 2014, que o Quilombo do Cumbe recebeu sua  certificação quilombola pela Fundação Palmares. E a partir daí, o quilombo passou a celebrar todo ano os passos firmes, mesmo que lentos, em direção a regularização territorial, agrária e ambiental, que realizava uma valiosa etapa nesse dia. O nome da Festa carregaria o do ecossistema que lhes é primeiro ancestral, lar, sustento, lazer… 

Seu Antoni ensinando a técnica de pesca de tarrafa (Foto de Elena Meirelles do Instituto Terramar)

E foi no mangue que boa parte da Festa se deu. No sábado, teve banho nas águas, pés e mãos nas lamas do Jaguaribe. Marisqueiras, Pescadores e Catadores mostraram os caminhos para catar o “cumê” do dia: búzios, sururu, ostras, peixes e caranguejos. Tiê Rocha não saiu de perto de Seu Antoni, que ensinava a lançar a rede de tarrafa pra quem se interessasse, levou um relato do mestre de volta com ele pra Fortaleza: “O filho dele estava junto e acompanhou também do começo ao fim, deu os lances dele, e teve um momento em que o seu Antoni falou: “Eu aprendi a pescar quando era da idade desse meu menino, ninguém me ensinou, vinha de madrugada com meu pai, ficava andando atrás dele e vendo o que ele fazia…” Pouco tempo depois ele falou: “ser filho de pescador não te faz saber pescar…”.

Os mestres do mangue aguardando o sinal para o começo da Corrida de Cata de Caranguejo, (Foto de Elena Meirelles)

Teve também a corrida de cata de caranguejo, conhecida programação da Festa, que tem como finalidade contar para os participantes sobre a prática ancestral, pouco reconhecida, mas que sustenta boa parte das famílias do Cumbe e leva o querido prato para as barracas de praia. Os mestres do mangue cataram 350 caranguejos em meia hora. Um número impactante para quem vem de fora. Mas, Ronaldo, liderança quilombola, explica que há uns anos atrás teriam sido muito mais. Que hoje o mangue está mais seco, com muita árvore morrendo, e os caranguejos menores do que eram antes, devido à degradação causada pelos mega-empreendimentos da região, principalmente da criação de camarão em massa, a carcinicultura.

“Cemitério manguezal” no braço do Rio Jaguaribe,  (Foto de Elena Meirelles)

“O que eles têm contra nós? Nosso crime é proteger o manguezal? Não somos dignas de viver, nos alimentar no nosso território?” indaga Luciana.Se ainda há manguezal em pé, é pela incessante luta travada pelos quilombolas e comunidades tradicionais pesqueiras. O Cumbe guarda história de engenhos e fazendas, e na atualidade se vê cercado por  muitos criadouros de camarão, um imenso parque eólico e uma instalação da Companhia de Água e Esgoto do Ceará – Cagece. São esses empreendimentos que ameaçam a sobrevivência dos manguezais, dos aquedutos das dunas, do solo, das lagoas e matas ciliares. Uma expressão do racismo ambiental. 

João do Cumbe, liderança histórica do Quilombo do Cumbe fala aos participantes da festa, (Foto de Elena Meirelles)

A linda festa, após os períodos mais graves da pandemia, retornou com força e vigor em meio a um acirramento da luta quilombola diante de injustiças e racismos protagonizados pelo Sistema de Justiça, que recentemente sentenciou a anulação do processo administrativo de demarcação do território quilombola, que caminhava no Incra para garantia dos direitos da comunidade. Para aqueles/as que não sabem, após a certificação  emitida pela Fundação Palmares, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) é encarregado de fazer a regularização fundiária e territorial, o que é feito em etapas, das quais algumas já estavam concluídas, quando o Juiz Bernardo Carneiro, da 15ª Vara Federal/SJCE interrompeu o processo de reparação histórica com sua sentença. 

Defensor Público Federal Fernando Holanda, representante dos quilombolas na justiça, quesitona a decisão e deve entrar com recurso: “A DPU é contrária a essa sentença. Foi produzida de forma descontextualizada dos documentos e colaboradores técnicos. O Linguajar denota uma alta carga de preconceito e incompreensão do conceito quilombo, ainda se baseando em uma estereotipia de quilombo.  Colocou em questão os procedimentos do INCRA que tem fundamentação acadêmica, se apoiando apenas em um laudo de um parecerista de alta carga de revisionismo histórico, desmantelando conceitos construídos há anos sobre os povos de origem afroindígena. Nessa sentença ficou muito claro que o julgador não se respaldou em elementos técnicos das ciências sociais, e apenas em achismos pessoais, preconceitos e revisionismos históricos.”*

Que estereotipia de quilombo é essa, que fundamenta a argumentação inválida do juiz? Ana Nobre, antropóloga e Assessora do Instituto Terramar, comenta: “A auto-identificação de uma comunidade enquanto quilombola é um direito constitucional, também regulamentado pelo decreto 4887 de 2003. (…) Que estereotipia de quilombo é essa, que fundamenta a argumentação inválida do juiz? Ana Nobre, antropóloga e Assessora do Instituto Terramar, comenta: “A auto-identificação de uma comunidade enquanto quilombola é um direito constitucional, também regulamentado pelo decreto 4887 de 2003. (…) Entender o que é Ser quilombola não deve ficar estagnado na imagem de uma comunidade com fenótipo preto retinto,  isolada geograficamente sem relação com seu entorno, com práticas produtivas relacionadas estritamente aos engenhos. É uma compreensão limitada ao imaginário do Quilombo dos Palmares, e é errônea. Tem uma diversidade de experiências quilombolas Brasil afora que atualiza essa compreensão do que é um Quilombo. O quilombo do Cumbe, por exemplo, é um quilombo pesqueiro. Na sentença vimos um juiz que adere a compreensão de um Antropólogo, Eduardo Luz, que já foi expulso da Associação de Antropólogos em 2013, já foi preso, aliado a bancada ruralista e tem um conjunto de atuações prejudiciais a afirmação de direitos das populações tradicionais em todo Brasil. Produziu um contra-laudo com métodos não reconhecidos pela antropologia, com trabalho de campo muito pontual sem contato com os quilombolas, e usa de fotos das lideranças quilombolas tiradas das redes sociais para comprovar sua teoria de manipulação identitária por não serem, a seu julgamento, negras. Ele então não tem fundamentação teórica e metodológica para criar um laudo válido que confronta o laudo produzido dentro do processo administrativo que seguia seu curso normal.”

Os documentos ignorados pelo juiz são laudos de servidores públicos do Incra, um parecer do Ministério Público, diversas produções acadêmicas, que usam metodologias reconhecidas e bibliografias atualizadas. Mas, é preciso identificar um procedimento padrão que é explicitamente anti-povos. Não é a primeira vez que esse Juiz decide contra os quilombolas do Ceará. No início desse ano, ele anulou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Quilombo de Ubaranas, comunidade vizinha ao Cumbe. E também negou o direito à vacinação prioritária do Quilombo do Cumbe no auge da pandemia. Está na cara, persiste no país o racismo estrutural escancarado nas instituições, incluindo o Sistema de Justiça, que carrega o dever de proteger os direitos, e não negá-los. Mas, esse sistema é também operado hegemonicamente pelos, ou sob a influência dos mesmos que historicamente concentram poder, terra e riqueza em suas mãos. Vale perguntar o que o sistema de justiça tem contra os povos? 

Apresentação do Grupo “Maracati” (Foto de Lívia de Paiva)

Mas, a resposta da comunidade é de quem já tem calo de resistência e já viveu o suficiente para saber que essa é só mais uma pedra no caminho da liberdade e conquista de direitos. A resposta do quilombo foi estar em festa, reverenciando as riquezas do ecossistema manguezal e dos modos de vida que convivem com o mesmo em permanente cuidado recíproco. Sempre que se enfrentam forças contrárias ao bem viver dos povos, se faz ainda mais necessário lembrar daquilo pelo qual se luta cotidianamente: Território livre, Manguezais vivos, Rios saudáveis, Pertencimento, Ancestralidade, Sustento, Lazer, Comida ancestral…

Grupo de Maculelê e Escola de capoeira pé no chão da equipe contra mestre bem-te-vi, professor Hulk
(Foto de Elena Meirelles)

“Falam que adoramos o diabo,

Mas os atabaques ainda estão falando,

E é por isso que nunca me calo. 

Já foram milhões de vidas dizimadas

Índios, Caboclos que aqui viviam

as benditas santas almas, 

dos escravos que aqui sofriam.

Salve o povo dos quilombos, 

que nessa terra sempre resistiram.” 

Poesia de jovem poeta Natiel, declamada na roda de encerramento da festa. Na Capoeira, no Maracatú e Maculelê, com os Kalungas, esculturas do artesão Alonso, e nas peças de Labirinto da dona (última pessoa que exerce a técnica hoje na comunidade) os quilombolas evocam a sua ancestralidade. Ninguém aqui anda só. E a comunidade reafirma: “Quem sabe dizer de nós, somos nós.”