Comunidade Quilombola Córrego de Ubaranas é surpreendida com sentença anulatória de RTID.

“O que está acontecendo é que as pessoas estão querendo contar nossa história. Mas quem conta nossa história somos nós! ” (José Francisco dos Santos/Dedé – Quilombola de Ubaranas)   

Na manhã de segunda-feira (30/05), a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará realizou uma audiência pública sobre a situação da Comunidade Quilombola Córrego de Ubaranas (Aracati/CE). Os moradores do território quilombola foram surpreendidos com a sentença judicial que declara a nulidade do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) dos remanescentes de quilombos da comunidade de Ubaranas e ainda, concedeu parcialmente a tutela provisória de evidência, devendo ao INCRA se abster de dar continuidade ao processo administrativo.

Para entender o caso:

Em 2010 foi emitida a Certidão de Autodefinição pela Fundação Palmares reconhecendo a população como remanescente de quilombo de Ubaranas. No mesmo ano, iniciou-se o processo administrativo junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos da comunidade de Ubaranas. Em 2012, foram iniciados os estudos do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) que teve sua publicação em Diário Oficial, em 2015. Houveram contestações que foram indeferidas tanto pela Procuradoria Federal Especial do INCRA, a Divisão de Ordenamento da Estrutura Fundiária e a Coordenação Geral de Regularização dos Territórios Quilombolas (DFQ) em virtude de ausência de amparo fático e jurídico, dando seguimento a etapa de desapropriação de imóveis localizados na área demarcada para posterior emissão do título da terra quilombola. Mesmo com todas as decisões administrativas indeferidas, os autores (proprietários de terras) entraram, com uma Ação de Reintegração de Posse (2016) e uma Ação Ordinária para Anulação de Ato Administrativo (2017), junto à justiça federal, em Limoeiro do Norte, Ceará.

O processo deu seguimento com várias movimentações, tanto da parte autora, como da Procuradoria Geral da União/INCRA, Ministério Público Federal e Fundação Palmares. Em 2021, houve inclusive uma audiência de instrução conjunta dos dois processos com testemunhas da parte autora e dos órgãos fundiários, mas sem a participação da comunidade quilombola que não foi chamada. Nesse momento, tanto Escritório Frei Tito da Assembleia Legislativa como Defensoria Pública da União/CE se manifestaram no processo, mas não foram ouvidos. Inclusive foi negado o ingresso da DPU frente a gravidade e ameaças a vidas das famílias quilombolas de Córrego de Ubaranas.

Os quilombolas do Córrego de Ubaranas não foram consultados ou avisados do processo, logo não foi possível construir uma defesa. A ação, em nenhum momento, considerou o acordo internacional Convenção 169/OIT (Brasil assina desde 2002), que garante uma consulta livre (sem violência) e informada (com transparência) frente a qualquer ação do Estado que incide sobre a vida de povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais (PCTs).

Ainda na audiência:   

Cris Faustino do Instituto Terramar reforçou em sua fala durante a audiência: “Temos avanços incríveis na democracia internacional, avanços que se deram pela mobilização e coparticipação das comunidades e povos incidindo sobre as estruturas que decidem e sobre as políticas internacionalizadas, por exemplo, dentro do sistema ONU”. Agora, cabe aos governos brasileiros, respeitar esses acordos.

A luta por direitos precisa ser coletiva, como ressalta a presidenta da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/CE, Raquel Andrade: “A luta não se faz só diante desses conflitos de território lá na terra, lá na comunidade quilombola ou indígena. A guerra processual, jurídica, a guerra dentro do direito é uma guerra importante também pra gente ter as armas certas, as melhores armas pra lutar. E essa foi uma guerra extremamente desleal, como são a maioria das guerras travadas por reconhecimentos de direitos para populações com identidades étnicas raciais”.

O racismo no sistema de justiça brasileiro acaba legitimando práticas de não reconhecimento das garantias de direitos de povos e comunidades, como ressaltou Soraya Tupinamb: “O racismo que se dirige ao Córrego de Ubaranas, se dirige a inúmeras outras comunidades que podem se dizer racializadas. Até então, 305 comunidades costeiras do Estado do Ceará não tem o reconhecimento da sua existência. O Estado não reconhece. Existe o auto reconhecimento, mas existe também a necessidade de o Estado entender que ele tem que abrir uma porta para dar acesso as políticas públicas”.

Um mapeamento feito em 2019 registra a presença de 86 comunidades quilombolas no Ceará. Contra o avanço racista no nosso estado e país, nós ecoamos o grito coletivo: “No Ceará tem negro e quilombola, sim“.

No final da audiência alguns encaminhamentos, como a organização da Campanha Nacional em Defesa das Comunidades Tradicionais, Criação da Rede Estadual ou GT de Proteção às Comunidades Quilombolas, denunciar  a sentença junto ao Conselho Nacional de Justiça, entre outras.  


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#NenhumQuilomboaMenos