IV Encontro do Movimento Ciclovida celebra inventividade na convivência com o semiárido

Construção coletiva e reflexão ecológica; criatividade para a convivência com o semiárido; perspectiva de autonomia antimercado. No Assentamento Barra do Leme (Pentecoste-CE), a área onde vivem os agricultores Inácio do Nascimento e Ivânia Cavalcante, os principais articuladores do movimento, deu espaço para os dez dias de atividades que, entre 24 de junho e 2 de julho, construíram o IV Encontro do Movimento Ciclovida. Nesse período,um grupo de pessoas diversas passou pelo local: homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, entidades e apoiadores independentes; alguns chegavam pela primeira vez, outros já eram velhos conhecidos.

O princípio da autogestão é guia de todo o encontro. Pelas manhãs, os participantes se reúnem para planejar as atividades do dia. As pessoas se dividem nas frentes de trabalho, como a construção de um banheiro para banho e o preparo das refeições, rodas de conversa sobre temas diversos e até mesmo processos relativos à espiritualidade com quem se dispõe a facilitar ou participar de um ou outro ritual de cura. O por do sol marca a hora de um novo momento comum. A troca é, indiscutivelmente, o maior desejo de quem chega até ali, tanto para aprender como para deixar o que tem de conhecimento. Todos os saberes são importantes, sem hierarquia.

Após os cinco anos da maior seca do século, o Ciclovida tem muito a celebrar nessa atividade. No primeiro dia, 24 de junho de 2017, se completam dez anos do retorno da viagem de bicicleta realizada por Ivânia e Inácio. Em 2006, o casal saiu do assentamento em direção à Argentina; enquanto pedalavam pelos mais de 10 mil quilômetros do trajeto, foram conhecendo diversas histórias de resistência e trocando as sementes crioulas que levaram do Ceará por outras que as pessoas tinham em seus territórios. O segundo motivo de comemoração é mais recente: o encontro se realiza sobre a primeira safra do artequífero, um sistema de captação e armazenamento de água criado e desenvolvido pelos agricultores.

Os caminhos das águas
“Se fosse natural, era aquífero; como é artificial, é artequífero”,explica Inácio logo no começo da caminhada. Foi a partir da observação do ecossistema que o agricultor começou a imaginar como modificar o terreno e reter, de alguma forma, a água da chuva que se perdia. O solo da região, ele ensina, é composto por três camadas: a primeira é o barro duro, conhecido como “de engenheiro”; a segunda é o chamado “barro de louça”, que vira lama ao entrar em contato com a água; a última é a pedra sedimentada. Nenhuma permite que a água seja retida. Pelo contrário: toda a chuva escoa para as partes mais baixas da área e nada é absorvido.

Prancheta 1-100Foi surgindo a ideia: cavar buracos, as chamadas “cisterras”, tendo como fundo a pedra sedimentada e nas paredes o barro de engenheiro. Cada buraco tem de 2 a 3 metros de profundidade, dependendo da altura em que a pedra aparece, e 5 a 7 metros de diâmetro. Todos são preenchidos com areia frouxa, de forma a permitir a penetração da água no solo, e interligados por valetas, também cavadas, preenchidas com matéria orgânica, de forma que a água possa transitar de um buraco para o outro quando o primeiro ficar cheio. Então, no período chuvoso, a água penetra nesses buracos e fica protegida da evaporação, simulando os aquíferos naturais.

A invenção dos agricultores dialoga também com a capacidade de regeneração e adaptação da natureza. Além das “cisterras”, o sistema conta com uma barragem de contenção e um pequeno açude, que atraem abelhas e, consequentemente, fortalecem e diversificam a fauna e a flora do entorno. A presença de água subterrânea e sobre o solo interfere também na criação de novos caminhos pelas próprias plantas, que são atraídas em direção aos locais que a água fica retida: “as árvores, como a Jurema e tantas outras da caatinga, têm raiz profunda e elas vão quebrando o solo, numa profundidade que a gente não tem noção, ela vai buscar água longe”, elucida Ivânia; assim, com o tempo, a terra fica mais e mais cheia de veredas que capilarizam a circulação de matéria orgânica e umidade.

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Não é possível ver o artequífero: em sua maior parte, ele está debaixo de terra. O que é perceptível a olho nu são as plantações de milho, abobrinha, ata, siriguela, algodão, tudo em meio às tradicionais paisagens áridas do sertão. Depois da última seca, quando o casal perdeu a agrofloresta criada a partir das sementes crioulas trazidas da viagem pela América Latina, é com alegria que veem a vegetação começar a mudar novamente. “Choveu pouco nessa região, mas a gente vê que o que choveu, a maior porcentagem, ficou na terra. A gente via a água descendo e ficando retida ali e vai alimentando devagarzinho a terra, aos poucos”, reflete Ivânia. Inácio, por sua vez, destaca que o processo ainda precisa de tempo: “a região do artequífero, a gente plantou e deu bem melhor. Mas os resultados vêm mesmo de quatro a cinco anos”, finaliza.