E esses direitos humanos?

por Cris Faustino (assessora do Instituto Terramar e militante do Fórum Cearense de Mulheres e da Articulação de Mulheres Brasileiras)

Recentemente, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE) foi falsamente identificado nas redes sociais como defensor de um acusado de tirar a vida de um policial. O boato foi, rapidamente, comprovado como falso. Restou ao parlamentar, que é defensor de direitos, enfrentar o tom acusatório dos rumores e se defender da hostilidade dos que são contra direitos humanos.

Além da ofensa que significa produzir e difundir informações falsas contra uma pessoa, e mesmo não entrando no mérito do crime em si, é preciso que pensemos e conversemos sobre algumas questões a que ele remete, considerando não apenas o trágico acontecimento, mas a realidade em que ele está inserido e o que ela nos pode alertar.

A ideia e a luta dos direitos humanos existem porque a nossa sociedade desenvolveu a noção de que, para uma boa e justa convivência, todas as pessoas são possuidoras de direitos. Mesmo se as pessoas cometem ou são suspeitas de crimes, elas não ficam, por isso, destituídas de direitos. Assim, continuam tendo o direito de defesa e as punições aplicáveis devem seguir rituais que sejam capazes de julgar e cumprir determinações legais, sem retirar dessas pessoas direitos fundamentais, como o direito de viver e de se defender.

Isso vale também para a polícia, e mais especificamente para cada um de seus agentes, que, nos seus métodos de segurança pública, têm se tornado uma das principais vias naturalizadas de violência contra a população pobre e negra nas periferias das cidades. Isso se dá, independente de as pessoas vitimadas estarem, ou não, envolvidas em atividades criminosas, o que, mesmo assim, não justificaria o ‘tribunal de rua’, ou a pena de morte informalizada. Mas mesmo os policiais que fazem isso têm direito à defesa e à vida. Vale também para os apresentadores de programas policiais, muitas vezes notórios agentes de hostilização e reprodutores do racismo contra as periferias.

Por outro lado, mesmo se numa sociedade de origens racistas e elitista como a nossa, predomina a ideia de que pobres e negros são bandidos e que deveriam todos morrer de forma brutal, isso não retira dessas pessoas sua condição de sujeitos de direito. Assim como não se pode matar policiais, não se pode torturar e matar jovens negros e não se pode estimular a violência contra nenhum grupo social, categorias profissionais ou quem quer que seja.

Premissas como essas, sobre as quais intervêm os direitos humanos, têm sido, por desconhecimento, ingenuidade, estupidez ou fascismo, distorcidas por setores conservadores que atuam contra os direitos dos outros, reivindicando somente para si e para seu grupo, família e classe social, a condição de cidadão. Isso se dá, dentre outras, através da promoção midiática da distorção, da desinformação, superficialidade no trato sobre o tema e desqualificação de seus argumentos.

No caso das violências cotidianas a explodir em diferentes comunidades de Fortaleza, infelizmente não dá para ‘santificar’ ninguém. Considerar, reconhecer e respeitar as dores de quem sofre, e lamentar a morte de um policial honesto e cumpridor de seus deveres, não significa negar a corrupção e violência gratuita e brutal dessa instituição. Portanto, se por acaso, existem manifestações de ódio e violência contra a polícia, isso não nasce dos direitos humanos e não pode ser descolado da forma como a instituição atua e se apresenta para a sociedade. Aliás, o pessoal dos diretos humanos também defende os direitos dos agentes de segurança publica, como a melhoria das condições de trabalho e da remuneração.

Vale ainda dizer que a violência não está centrada somente na ‘maldade’ das pessoas, mas, também na forma como elas são socializadas, no contexto em que convivem, nas possibilidades e ‘perrengues’ da vida e nas culturas institucionais que lhes orientam. Isso vale para ‘policia e bandido’ e para ‘bandido-policia’. Muito poderíamos falar sobre essas denominações e relações, mas não vai dar nesse texto. O fato é que, se famílias de policiais temem, sofrem e choram, famílias de vítimas de chacinas nas periferias também temem, sofrem e choram. Se somos sujeitos éticos, é impossível selecionar qual dessas dores são mais ou menos sofridas, merecem mais ou menos amparo.

Contudo, é sabido que a promoção da justiça é diferente de vingança pessoal ou aplicação do ódio social a um determinando grupo, e na sociedade democrática deve ser entendida e aplicada conforme as conquistas e avanços sociais e institucionais. Mas será que essas conquistas e avanços são suficientes para termos segurança nessa justiça? E as enormes distâncias entre as conquistas legais de direitos e as práticas de clientelismo, corrupção e violência institucional? O quanto será que as políticas de repressão tem promovido de fato a pacificação social, incluindo a proteção e segurança de policiais?

Se as dores merecem ser consideradas pela justiça e pelo direito, não é possível fazer isso através dos discursos e práticas que as produzem e reproduzem. A hostilização da população negra e pobre, a legitimação da violência institucional da polícia, a desqualificação dos direitos humanos como instrumento de justiça social e os discursos populistas e apelativos da grande mídia não ajudam a população a pensar sobre si, não colaboram com a justiça e menos ainda com a pacificação das cidades. O que isso gera, no mínimo, é uma suposta segurança de uns, e uma imensa insegurança e brutalidade contra outros, disso sabemos. Mesmo se insistimos em manter os olhos fechados, em eleger falsos inimigos ou produzir falsas polêmicas para aplacar as dores de quem sobre, a vida grita!