“ONDAS” DE PETRÓLEO E DESCASO QUE SE ABATEM SOBRE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS COSTEIROS NO CEARÁ

“Nesse tempo já era pro peixe tá batendo. O
inverno traz muito peixe pra perto dos currais.
Mas não sei o que aconteceu. Pode ser por
conta desse óleo aí né? ” (J.J., Pescador de Acaraú)

Há quase seis meses vimos um dos maiores desastres ambientais com petróleo chegar aos territórios costeiros de todo nordeste brasileiro. Uma “onda” que quebrou e ainda está quebrando violentamente sobre vidas, ecossistemas frágeis, culturas, economias e sentimentos. A fala de J.J. dá conta de parte dos sentimentos aflorados por pescadores e pescadoras, na incerteza do que vem na próxima maré e o que quebrará na próxima onda. A situação dessas populações tradicionais pouco compreendidas e visibilizadas no turbilhão desse desastre ambiental revela o descaso e pouco esforço do Estado para amparo, informações e medidas emergenciais para essas comunidades que sobrevivem dos mares e dos rios. Enquanto esperamos pela execução das análises químicas de pescados, água e areia, as populações seguem ingerindo o pescado com a incerteza da sua contaminação, banhistas seguem desfrutando de mares e rios que receberam grandes quantidades de petróleo e o boicote do mercado ao pescado dessas regiões empobrece cada vez mais uma população que pouco ou nada tinha de apoio à sua pesca artesanal por parte dessas governanças.

Com isso, nesses últimos meses, temos participado de reuniões com muitos encaminhamentos e poucas efetividades por parte das autoridades responsáveis. Não dizemos que nada está sendo feito, pois o petróleo foi coletado dos ambientes, porém é muito pouco diante do desastre causado. A inércia pública com os encaminhamentos torna o prejuízo dessas populações ainda maior, quando nos deparamos com o risco da chegada de mais petróleo, na eminência de mais um swell* que se aproxima nesse período de inverno. Na região da Foz do Jaguaribe a maioria das marisqueiras vai e retorna do mercado com suas caixas cheias de mariscos rejeitados pelos consumidores. Como chegar em casa e não se deparar com as contas do mês? Com a volta às aulas das crianças sem material escolar?O que comer além do que pesca, sem ter recursos para compras? Perguntas como essas nos dão um nó na garganta enquanto alguns políticos debocham dessas populações, dizendo que continuam comendo peixe em restaurantes. A essas populações foi dada uma sentença cruel de conviverem com uma possível contaminação invisível dos químicos dispersados em água, areia e pescados, de efeito cumulativo com riscos de doenças graves, como o câncer. As mulheres marisqueiras são prejudicadas por esse desastre, com sua impossibilidade de mudar de atividade, não existem áreas seguras para realizarem sua cata de marisco e muitas vezes são essas mulheres que respondem por toda renda familiar. O empobrecimento das mulheres é ao mesmo tempo o empobrecimento comunitário. Eis uma lição básica.

Vivenciamos o extermínio silencioso de uma população que põe nas mesas dos brasileiros cerca de 70% de todo pescado consumido no país. Mesmo assim não é reconhecida por parte da sociedade e pela maioria dos governantes como construtores de segurança e soberania alimentar. Esses pescadores e pescadoras que contribuem para o crescimento da economia, sequer são enxergados, a não ser por seus títulos de eleitores que precisarão utilizar nas eleições que se aproximam. Uma das únicas medidas de “compensação” tomada pelo governo brasileiro, foi o auxílio pecuniário, além de ser ínfimo, foi desorganizado, deixando de fora alguns trabalhadores com Registro Geral de Pesca (RGP) ativo e colocando na folha de pagamento pescadores que já faleceram. Dados coletados pelo Instituto Terramar em ação de campo nas praias da região leste do Ceará, em novembro de 2019, apontam para uma fragilização e invisibilização das marisqueiras, pescadores, pescadoras e catadores de caranguejos em aproximadamente 24 comunidades que sobrevivem as margens do rio Jaguaribe e dele tiram seu sustento. Em contato com esses trabalhadores e trabalhadoras nos foi relatado que o percentual de pessoas filiadas às colônias, sindicatos e com RGP, é muito maior do que imaginamos. A maioria não terá acesso ao auxílio pecuniário citado acima, por não possuírem registro de pesca. Uma crueldade que se abate sobre essas populações que aparentemente nem existem para o governo brasileiro como categoria trabalhista. Somado a isso tem uma série de medidas que colaboram para o risco de extinção dessa categoria que, atualmente, tem seus territórios sendo rifados pelo Governo Federal com a alegação de arrecadar com a venda de terras da união.

Estamos diante de grandes desafios no que diz respeito à existência e resistência dos povos do mar desse país, e compreendemos que mais do que nunca é hora de reafirmar essas populações que historicamente foram e são grandes ambientalistas e detentores de saberes que preservam e mantêm o ecossistema marinho costeiro. São esses homens e mulheres que asseguram um  equilíbrio ambiental com suas artes milenares de captura de pescado, permitindo que os estoques não sejam exauridos. É por conta desta categoria que as cidades se alimentam de peixes com qualidade. Nesse sentido aproximar-se e solidarizar-se com essas comunidades e gentes em apoio a pesca artesanal e defender essa categoria não nos torna só pessoas justas, mas também responsáveis pela manutenção de uma parte do planeta. Somos todos responsáveis pela construção de um mundo melhor, então, sigamos juntos e juntas em defesa dos territórios tradicionais costeiros e dos povos do mar do Ceará.

TEXTO: ROGÉRIA RODRIGUES – COORDENADORA DE CAMPO DO INSTITUTO  TERRAMAR

swell* *Formação de ondas ininterruptas de longa duração e sem interrupção, a partir de tempestades em
alto mar. (https://www.dicio.com.br/swell/)