[ARTIGO] Velas de solidariedade e justiça

Soraya Vanini Tupinambá
Presidenta do Instituto Terramar e Assessora de meio ambiente do Mandato É Tempo de Resistência

Pontos brancos em verdes mares, essas são nossas jangadas nas praias do Ceará. Cantada por poetas, compositores, quem não lembra na voz de Ednardo “as velas do Mucuripe vão sair para pescar”? A jangada é talvez uma das únicas permanências em nossa paisagem, dadas as modificações profundas vividas no litoral, em nossas cidades, em nosso estado.

As cenas de partidas e retornos dessas embarcações se repetem desde tempos imemoriais. Para os homens e as poucas mulheres que lidam com o mar cotidianamente no exercício das pescarias, este se constitui um espaço conhecido, com caminhos traçados e pontos identificados, que pode nos levar a crer ser este um território apaziguado pela apropriação. Porém a vida no mar é também marcada por riscos e incertezas, que explicam temores e medos, acidentes e naufrágios.

O retorno sempre representou para os familiares do(a) pescador(a) uma enorme alegria, aquela que se faz das conquistas cotidianas, o voltar pra casa no caso desse trabalhador(a) é sempre marcado pelo perigo e pela insegurança.

Hoje, no entanto, há um risco e uma insegurança ainda maior: trata-se da existência e permanência desses trabalhadores e de sua atividade fundamental, a pesca artesanal no Ceará. O medo maior para os que ainda resistem é de serem expulsos do seu local de moradia à beira mar.

A atividade pesqueira originou várias culturas litorâneas regionais ligadas à pesca, entre as quais a do jangadeiro, em todo o litoral nordestino, do Ceará até o sul da Bahia. A pesca artesanal que caracteriza a atuação dos jangadeiros é responsável por 70% das capturas. A pesca para subsistência e para complementação de renda é uma alternativa essencial para o modo de vida das comunidades costeiras e marítimas dessa região.

No caso do Ceará o estado é pontilhado em seu litoral por cerca de uma centena de comunidades que tem a pesca artesanal como atividade fundamental e estruturante dos modos de vida dessas comunidades.

As comunidades costeiras se originaram a partir do declínio de alguns ciclos econômicos. Muitas foram formadas por negros(as) outrora escravizados(as) pelo então próspero cultivo da cana-de-açúcar. Nas senzalas dos engenhos, diferentes etnias africanas conviveram sem perder suas raízes culturais. Mesclada à herança da colonização portuguesa e ao patrimônio cultural dos indígenas, criou-se uma diversidade constituidora dessas culturas marítimas que buscavam o litoral, onde as terras eram livres. Fundamental é também compreender a influência destes grupos na “cultura” –, entendida não de modo limitado ao folclore, à música, à dança, mas também ao modo de comer, falar, andar, silenciar, ações e noções relativas à vida cotidiana.

Ainda que a pesca artesanal tradicional tenha se desenvolvido num contexto de pobreza e marginalização social permanente, algumas comunidades de pescadores consolidaram seu controle sobre espaços marítimos e territórios costeiros valiosos.

Território estes que passaram a ser disputados pelo veraneio, a indústria do turismo, do cultivo de camarão, da pesca empresarial/industrial, dos parques eólicos em terra e agora (2019) no mar, restringindo suas áreas de pescaria.

O desenvolvimento das atividades econômicas invariavelmente tratam a região costeira do Ceará como vazios demográficos, ainda que secularmente, sejam habitadas por populações tradicionais. Somente há poucas décadas essas populações se tornaram mais visíveis, quando começaram a se organizar e resistir às expulsões de suas áreas costeiras, muito valorizadas pela especulação imobiliária.

Têm sido insuportável a pressão exercida sinergicamente por esse conjunto de atividades sobre seus territórios, sem que nenhum Estado os defenda minimamente, tudo ao contrário, o Estado flexibiliza legislações, financia, e não exerce seu papel regulador sobre esses setores econômicos.

Na última semana fomos surpreendidos por mais uma brutal injustiça na zona costeira, uma entre múltiplas, uma reintegração de posse na Resex da Prainha do Canto Verde em Beberibe, a primeira Reserva Extrativista de Terra e Mar do Ceará, decretada em 2009.

José Maria da Costa, o Dedé, como é conhecido, mora na Prainha desde que nasceu (42 anos) e vive na casa desde 2003, a casa é assentada num terreno onde vivem mais 12 pessoas e é alvo de reintegração de posse.

O mandado de reintegração de posse que favorece um empresário português foi assinado pelo juiz da 1ª Vara da Comarca de Beberibe, Magno Rocha Thé Mota, no último dia 15 de janeiro.

A manutenção do direito ao território por parte dos moradores é uma das razões da existência de uma Resex e é central para a manutenção desses modos de vida e a conservação da biodiversidade, das paisagens, da cultura desses povos.

Os povos do mar do Ceará convidam a todas e todos a embarcarem e içarem a vela nessa jangada de justiça e solidariedade, lutando pela permanência dos moradores em seus territórios de terra e de mar.

Matéria do jornal O Povo em 26/02/2019: Moradores de reserva em Beberibe temem desapropriação após decisão judicial

Abaixo: desenho pontilhado de José Maria da Costa, Dedé, da Prainha do Canto Verde.

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