Dia de Mobilização reúne comunidades da Zona Costeira em defesa do território

“Quando o território não é demarcado, o racismo ambiental vai lá e demarca através do extermínio”. A fala de Francisco Nonato do Nascimento, assessor do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), sintetiza a secular história dos conflitos na Zona Costeira do Ceará. Seja terra indígena, reserva extrativista, assentamento de reforma agrária ou outros territórios tradicionalmente ocupados, o roteiro é o mesmo: um belo dia, um suposto proprietário chega na comunidade, especulada como terra desabitada, e tenta expulsar os povos que ali vivem. Não, entretanto, sem resistência. No último dia 27, povos de 20 comunidades tradicionais costeiras e três etnias indígenas se encontraram na Assembleia Legislativa do Ceará para o Dia de Mobilização em Defesa dos Povos e Territórios Tradicionais Costeiros.

Na contramão do cotidiano, corpos negros e indígenas ocuparam a “Casa do Povo”. A abertura do Seminário em Defesa dos Territórios Tradicionais Costeiros contou com a força ancestral e espiritualidade do povo indígena Tremembé da Barra do Mundaú. Ao longo da manhã, uma tribuna livre deu voz às histórias de luta em defesa dos territórios e “também contra esse direito romano, que não entende que a gente vive em comunidade”, explica Nonato. Nos inúmeros relatos, a afirmação coletiva de que a reivindicação é a defesa de uma existência que se entrelaça ao território em sua integralidade. Gente, terra, matas, rios, mar, cachoeiras: tudo é importante.

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O Seminário foi também ocasião do lançamento da Campanha Contra a Comercialização de Terras na Zona Costeira. A articulação, que começou a cerca de um ano, parte de comunidades tradicionais e de instituições da sociedade civil e agora vem a público aprofundar seus debates. Dentre os objetivos da Campanha, dois ganham especial destaque: a afirmação de que comprar e vender terras na zona costeira é um mau negócio para as partes envolvidas e a importância estratégica e ambiental da conservação desse espaço para toda a sociedade. Nesse sentido, o militante ambiental João do Cumbe é categórico: “quem protege o meio ambiente somos nós povos e comunidades tradicionais. E se quisermos avançar nessas questões, é a demarcação dos territórios que vai garantir a preservação”.

 

Conflitos fundiários na Zona Costeira são debatidos em Audiência Pública

O poder público também foi convocado a dar resposta para as inúmeras demandas comunitárias. A tarde do Dia de Mobilização foi dedicada à audiência pública sobre conflitos fundiários na zona costeira presidida pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL). “Com o passar dos anos, as fronteiras econômicas chegaram a essas comunidades. Estamos vivendo uma crise ambiental planetária”, iniciou o deputado, ressaltando a importância do tema em debate. Dentre os órgãos convocados, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e a Superintendência do Patrimônio da União (SPU) foram os mais cobrados a responder por suas atuações nos territórios costeiros.

Dos 513 quilômetros de praia do Ceará, são 33 municípios sob influência dos ecossistemas marinhos costeiros e 20 que se localizam na zona costeira propriamente dita. “Esse território sempre abrigou populações tradicionais nativas, que foram obrigadas a negar sua cultura, sua raça, sua existência para sobreviver desde o tempo dos aldeamentos”, analisa Rogéria Rodrigues, coordenadora do Instituto Terramar. A expulsão dos povos tradicionais de seus territórios, ela destaca, é um assunto que prejudica toda a população, pois a instalação de grandes negócios afeta inclusive a produção de alimentos e as reservas de água doce do estado.

A denúncia da sistemática violência sofrida pelos povos tradicionais costeiros ao longo dos tempos ganhou destaque na audiência. “Todas as questões de terras têm um amigo muito bom, que é o Estado, através dos subsídios que dá aos empreendimentos”, refletiu Angelaine Alves, agricultora agroecológica e pescadora da comunidade de Tatajuba. Em consonância, a liderança indígena Adriana Tremembé exemplificou: “muitas vezes, os órgãos públicos dão licenciamento para a instalação de grandes empreendimentos, como o [complexo de resorts] Nova Atlântida, liberado pela Semace [na terra indígena Tremembé da Barra do Mundaú]”.

O discurso dos órgãos públicos girou em torno, principalmente, da falta de recursos e da dificuldade de efetivar as políticas. O servidor do Incra Marcos Cândido reconheceu a dificuldade de desenvolver a contento as políticas de reforma agrária e que “mesmo uma área desapropriada ainda tem pressão por parte de comunidades do entorno e empresários”. O assessor da SPU Claudio Cruz, por sua vez, apresentou a informação de que até seis meses atrás, apenas cerca de 5% da área do litoral estava demarcada. A análise do defensor público do núcleo de habitação e moradia, Lino Fonteles, porém, cobra responsabilidade: “o Estado não tem dado a atenção que esses conflitos merecem. Eles precisam ser tratados com melhor afinco por todos os seus servidores”.

A Semace foi o órgão mais inquirido da tarde, pois é a responsável por licenciar e fiscalizar empreendimentos que afetam os ecossistemas e potencializam os conflitos e a violência nos territórios. Quase todas as comunidades presentes apresentaram demandas em relação à Superintendência quanto a liberações que as prejudicaram. De acordo com seu representante, Carlos Alberto Mendes, o nó da questão é a fiscalização, uma vez que o órgão dispõe apenas de 28 fiscais para todo o estado. A emissão de licenciamentos, entretanto, segue normalmente e com bastante agilidade. “Se você licencia mais do que tem condições de fiscalizar, você não deve licenciar”, propõe Roseno.