Sistemas Tradicionais de Uso e Ocupação dos Territórios: ensaio desde uma abordagem de gênero, geração e agroecologia

As atividades e os sistemas de produção tradicionais são as dinâmicas históricas realizadas pelas comunidades tradicionais em sua relação com o meio onde vivem. Para além dos fins econômicos, expressam os modos de vida e trabalho. Na Zona Costeira, essas atividades são principalmente a pesca artesanal, a agricultura camponesa, o artesanato, a medicina popular, as artes e festejos locais e as práticas seculares de beneficiamentos da produção local, como a mandioca e o pescado.

Demarcando a convivência entre a terra e o mar, essas atividades estão assentadas na interrelação com os ecossistemas, seus ciclos, temporalidades e espacialidades, e têm papel central na formação cultural, política e social dos territórios. A partir dessas dinâmicas, as comunidades estabelecem modos de vida próprios: na forma de ocupar os espaços e construir meios de sobrevivência; nas relações de vizinhança; nas artes; no exercício intelectual e produção de conhecimentos; na organização política; e na vivência dos afetos, espiritualidades e ancestralidades.

De origem negra, indígena e sertaneja, as comunidades que se identificam como de pesca artesanal compõem parte significativa dos grupos que convivem na Zona Costeira. Nos territórios tradicionais costeiros, a agricultura camponesa ocorre de forma integrada à pesca artesanal, considerando as especificidades de trajetórias e ecossistemas locais. Contudo, em alguns casos, a agricultura ganha grande centralidade e é determinante para reprodução material da comunidade; é o caso, por exemplo, das comunidades Assentamento Sabiaguaba, Assentamento Maceió e Curral Velho nos municípios Amontada, Itapipoca e Acaraú respectivamente.

Na cadeia produtiva da pesca artesanal, é possível identificar no âmbito familiar e comunitário um campo de relações diversificado quanto à atuação de homens e mulheres de todas as idades. As mulheres pescadoras, sobretudo as adultas, além de participarem diretamente da extração do pescado, assumem o trabalho do cotidiano doméstico numa sobrecarga de funções que se constituem, conforme alguns relatos, em elemento que dificulta a intensificação da atuação política, por exemplo. Além disso, destacam-se na cadeia produtiva as atividades de conserto e cuidado com os apetrechos utilizados por elas e pelos homens e o beneficiamento e a comercialização dos pescados. Ademais, uma parcela significativa da agricultura tradicional é realizada pelas mulheres, que desenvolveram conhecimentos e formas específicas de fazê-lo, como os quintais produtivos, onde são cultivados alimentos vegetais, animais de pequeno porte, ervas e plantas medicinais. As mulheres são também as principais produtoras de artesanato e beneficiadoras das produções locais. No âmbito das artes e festejos locais, as mulheres, adultas e jovens, estão presentes fortemente na organização de festas religiosas, o que incidiu em espaços de organização política de luta pela garantia e defesa dos territórios em muitas comunidades.

Para homens e mulheres, o avanço das fronteiras produtivas da lógica de mercado e sedução para o consumo massificado resultam na crise das atividades tradicionais e dificultam, nas comunidades, não só a manutenção de seus sistemas produtivos e modos de vida, mas também o envolvimento das novas gerações. Para a juventude, algumas questões podem ser citadas como relevantes. Em algumas comunidades, as novas gerações, em especial de mulheres, tiveram, nos últimos dez anos, maior acesso à educação superior, porém voltada para atuações no mercado. Nesse passo, os jovens são pressionados a adaptarem-se aos projetos econômicos externos e expansão de grandes empreendimentos de infraestrutura, energia, carcinicultura, turismo e industrial petroleira e portuária. A crise nas atividades produtivas tradicionais aumenta a dependência monetária e pressiona a juventude e suas famílias no suprimento das necessidades orçamentárias domésticas. Outras questões que influenciam a realidade das atividades tradicionais são o aumento do acesso de jovens às tecnologias digitais, como a internet, e às culturas urbanas. Esses aspectos geram uma série de tensões e desafios para as juventudes da Zona Costeira, considerando sua diversidade de trajetórias e condições históricas.

Esse contexto aponta a relevância de fortalecer e valorizar as práticas das mulheres e das juventudes, assim como, entender e enfrentar os conflitos geracionais e de gênero como demandas urgentes na discussão das atividades e sistemas tradicionais costeiros. Estes aspectos incidem inclusive no avanço de estratégias de garantia e defesa dos territórios.

Defender e fortalecer esses territórios em seus modos de vida e trabalho é fundamental e legítimo para garantir direitos e equilíbrio ambiental. Na contramão da produção em larga escala para aquecimento da economia a qualquer custo e no contexto de conflitos socioambientais, essas comunidades experimentam práticas cotidianas que apresentam potencial político e epistemológico importante para as relações da humanidade com o planeta. Inclui-se também nessas experiências, o esforço de “redescobrir” técnicas milenares de armazenamento de água, bioconstrução e melhoramento das condições do solo a partir de material orgânico e biológico, por exemplo. Isso tem sido reconhecido como “tecnologias reservas”, quando, no entanto, deveriam ser constadas como “de base” para a formação de uma sociedade mais coerente e preocupada com a segurança e soberania alimentar, saúde e bem estar coletivos.

No que se referem às ações políticas e pedagógicas, é preciso considerar as práticas e conhecimentos comunitários desde um convívio agroecológico, tendo este como concepção integrada das diversas dimensões das sociedades e naturezas, que aponta para a valorização e construção de novas cosmovisões que compreendam a integralidade da vida política, social, ambiental, econômica e cultural. Sob essa concepção, as atividades e modos de vida tradicionais se transformam em importantes instrumentos de autodefesa.

Essa autodefesa em contextos adversos exige que se avance na construção coletiva de entendimento da realidade, incluindo as interrelações entre o “moderno” e o “tradicional”, não em perspectivas hierárquicas, mas situados nos contextos históricos e pautados nos aspectos constitutivos dos modos de vida das comunidades tradicionais costeiras. Parte-se do pressuposto de que reconhecer a amplitude de possibilidades e práticas, bem como a condição de sujeitos dessas comunidades, implica em lhes conferir autonomia e capacidade para decidir sobre os territórios onde habitam e defender-se de processos ambiental e socialmente degradadores.

— Este é o primeiro de uma série de artigos que abordarão reflexivamente temáticas cotidianas do trabalho institucional. Todos os textos são construídos coletivamente pela equipe do Instituto Terramar a partir de debates internos e sistemáticos.